Cristinas, rainhas (e um dinossauro laranja).

Nos anos 60, um connaisseur de música marcelesa era alguém capaz de reconhecer a voz delicada de Adamo, analisar as letras de Charles Aznavour ou cochichar sobre as sacanagens de Serge Gainsbourg sem ruborizar. Mas hoje, mais de 50 anos mais tarde, a tarefa que já não era lá muito das mais fáceis, chega ao paroxismo de sua complexidade. Tentar descrever a arte de uma Christine and the Queens, por exemplo,  faz a compreensão  de um porre de Jacques Brel no porto de Amsterdam mais simples que roubar um Carambar da boca do Jordy.

Pra começar, a tal da Christine não se chama Christine. E ela não anda acompanhada de esposas reais. Mas ela canta. E seu primeiro single – “Christine” – já alçou um estrondoso sucesso de público e crítica, um fenômeno instantâneo que só pode existir numa época em que os gostos e tendências viajam no espaço-tempo com uma velocidade próxima da luz.

Desde sua  introdução, “Christine” é uma verdadeira descida no escorregador do parquinho musical dos anos 80 : duas notinhas, como sons de um brinquedo, que fazem pensar em “Close to me” do The Cure (nota bene:  fora do armário). Depois, vem a respiração entrecortada por solucinhos e ofegos, marca fundada por um certo Michael Jackson em meados do século XX com franquias abertas em vários repertórios da musica Pop (e em alguns outros do cinema pouco recomendado para menores de 18 anos).

E então, chega a vez da voz. Gostosa. Que às vezes parece a da Enya, com certas inflexões que lembram ainda o tal do Michael, mas tomando o apreciado cuidado de não escorregar na estrada esburacada  do The Cramberries,  (desaconselhada para entranhas mais sensíveis).  Elas vêm em alguns momentos acompanhadas de uma duplicação no backing vocal que provoca um flashback-Spice Girls (que felizmente passa rápido), só que agora cantando metade em francês e metade em inglês (pourquoi, mon Dieu, pourquoi?),  heresia sem nome cometida por muitas estrelas da cena musical Marcelesa atual.

Essa fondue intrigante de influências é encontrada também visualmente. O clip de “Christine” mostra que a voz vem de uma menina que dança como o Michael Jackson, veste-se como o Michael Jackson, e é  loira, delicada e bonita como… ora, como Héloïse Letissier, o  verdadeiro nome de “Christine and the queens”.

E ela dança bem. Não no sentido “balé clássico” do termo, mas de uma maneira performance-de-arte- moderna , cheia de referências e com uma estética que  define não somente o clip como  o seu estilo:  minimalista, geométrico, meio hipnótico e difícil de definir. Como o azul Klein que serve de pano de fundo para as outras silhuetas, que coreografam junto à rainha.

Criado como um projeto artístico completo onde diferentes campos da arte cênica dialogam e se entrelaçam, “Christine and the queens ” é um curioso patchwork  concebido na França, nascido em Londres e inspirado, como o próprio nome declara, pelo universo daqueles que não têm apenas um sexo definido. Dos que pertencem a todos os gêneros e ao mesmo tempo a nenhum,  como os anjos,  os caracóis e todas as moças bonitas que convidam a dar uma voltinha pelo  “Wild Side”.

Confessa que foi desengonçada quando adolescente – uma metamorfose certamente realizada em  duplo fast-forward, ja que a Rainha tem apenas 26 anos e de desengonçada não tem nada-  e tuita que a fama não vai torná-la a princesa que ela não será jamais. Diz que foi influenciada por Bowie e  cita “Heroes” ,  ao reclamar da foto de Mondino escolhida para a capa da Elle, alegando que  outras do mesmo shooting revelavam melhor  sua  verdadeira essência : “We can be us, just for one day” . Um toque de “blaséitude” que a elevou inevitável e rapidamente ao patamar de ícone de moda (como seu mestre camaleão), apesar dos cabelos dormidos e do rosto quase sem maquiagem. Nada mais terrivelmente fashion que um discurso anti-fashion.

“Começo os livros pelo fim”, diz o verso do single “Christine”. ” E me maquio com Mercurocromo”.Desejo de transgressão, discurso melancólico pós-adolescente, influências artísticas diversas, base eletrônica e danças bem coordenadas…Um coquetel “Gloubi-boulga” bem  ao gosto da sociedade marcelesa youtubeuse-moderna que deu origem a múltiplos prêmios (inclusive do respeitado “Victoires de la Musique”) para essa artista impossível a rotular.

Christine and the queens  é mais ou menos isso. Um certo  gosto de déjà-vu que , como um pain au chocolat amanhecido, um macaron que gruda nos dedos ou um personagem que marcou nossa infância ,  tem algo de deliciosamente familiar e que, justamente por isso, não deixa de ser muito bom.

Pra fazer o que seus súditos fizeram mais de dezenove milhões de vezes:

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Nota do Marcel pra Christine and the Queens

“Sempre gostei de Gloubi-boulgas. E esse aí  grudou na minha orelha. Mas que era mais fácil de explicar Cristophe se esgoelando pra que aquela “garce” da Aline volte pra ele, ah, isso era.”

Flash Dicionário Luso-Marcelês:

Connaisseur : aquele cara que parece saber muito mais que você. Só que não.

Jacques Brel : Um cantor belga que todo mundo pensa que é francês.

Gloubi-boulga : especialidade gastronômica de um dinossauro laranja chamado Casimir (mesmo os dinossauros de programas infantis são chefs de cozinha na Casa do Marcel). Pertence à mesma família gustativa e visual que aquilo que se cozinha quando se está no primeiro ano da faculdade longe da casa da mãe.

Garce : Aquela ga…rota que tem a pele perfeita, a boca perfeita, o cabelo perfeito, que entra num jeans 36 e que toda mulher a-d-o-r-a ter perto do namorado.

Blaséitude : neologismo criado pelo autor desta coluna pra definir alguém como Lana Del Rey e Cara Delevingne.

 

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