O dia em que Marcel foi vítima do novo livro de Delphine de Vigan

crítica do novo livro de Delphine de Vigan

Não esqueça : Nunca se deve subestimar uma obra até chegar à sua ultima página…

Desde pequeno, o Marcel tem fome de letras. Antes do nascimento dos smartfones e do canto da sereia irresistível dos “feeds” de notícias, ele tinha sempre dentro de sua “pochette” um livro sobre um assunto qualquer. Das histórias de reis às de vassalos, dos poemas de Prévert às aventuras de Julio Verne, nada, nada do que estava exposto nas prateleiras dos corredores de sua biblioteca escolar escapava à sua gulodice verbal (o que o levou a ganhar bem cedo a alcunha nada invejável de “intello”).

A particularidade desse mini-leitor inveterado era a de nunca se deixar sequestrar totalmente pela imaginação dos autores. As vezes, um livro o empolgava até a pagina 138, onde o autor desgraçadamente escorregava em facilidades narrativas e destruía, com golpes de frases “bateau“, a promessa de uma obra brilhante. Ele se rebelava (voilà uma expressão bastante “bateau” : existe algum habitante da Casa do Marcel que não se rebela diante de qualquer coisa?) e ao ser interrogado por sua mãe sobre o quê estava lendo, inventava, a partir da pagina 139, uma história completamente diferente, cheia de surpresas e intrigas complexas que fascinavam sua genitora, coruja e fã .

Até chegar o dia em que ela resolveu ler a obra que estava em cima do criado-mudo do menino. E, ao chegar em casa, ela o recebeu, como sempre, com novas perguntas sobre sua leitura. Marcel, é claro, inventou como de costume a mais interessante das narrativas, à qual ela ouviu atentamente para, com um sorriso nos lábios (e o livro nas mãos), comentar em seguida: “Sabe meu filho,  eu não li nadinha disso aí que você me contou.”

Esse desmascaramento assombrou Marcel até a idade adulta. A fim de perdoar a si mesmo por suas repetidas trapaças literárias (onde já se viu, mentir assim, descaradamente, para a própria mãe?), ele inventou uma teoria, pela qual o que realmente importa não é exatamente o que está escrito dentro de um livro, mas o que suas páginas inscrevem no universo obscuro da interioridade de cada leitor.

É claro que sua mãe nunca mais caiu nos seus contos-da-carochinha. Mas sem querer, Marcel, vítima de sua própria má-fé, acabou por resumir assim, anos mais tarde, a intriga do novo livro que acabou de ler : ” D’après une histoire vraie” (algo como “Inspirado em fatos reais”), de Delphine de Vigan.

Para se redimir da sinceridade desconcertante de seu livro anterior, onde retraça a vida de sua mãe suicida, a autora de Rien ne s’oppose à la nuit (“Nada se opõe à noite”) se lança desta vez numa espécie de thriller psicológico, envolvendo uma misteriosa mulher e uma escritora em pane de inspiração.

“L”, uma ghost-writer inteligente e sedutora, adentra a vida da personagem “Delphine” (oh! coincidência!), autora de um best-seller aclamado pela crítica. Insegura e depressiva (traço de personalidade “tão raro” nos escritores…) ela se deixa envolver emocionalmente por “L” (elle…), à ponto de tornar-se totalmente dependente.

Tudo começa com a crescente cumplicidade entre as duas mulheres. Espirituosa e sempre à disposição, “L” se revela a amiga ideal, cobrindo Delphine de afeto e de delicadas atenções. O sucesso do livro anterior que fez dela uma celebridade deixou cicatrizes dolorosas, o que a leva a buscar refúgio numa barricada fictícia para seu próximo livro. Mas “L” , que é escritora de biografias, decide travar com sua mais nova amiga um verdadeiro duelo intelectual : para ela, um livro deve sempre contar algo que aconteceu de verdade. Qual o interesse de uma história inventada numa época em que, para garantir suas audiências, até os programas de TV são relatos voyeuristas da vida privada de seus participantes ?

Ainda que fragilizada, Delphine resiste a essa ideia. Afinal, o que é ficção ? O que é realidade ? Ela  defende que cabe aos escritores e leitores estabelecer uma negociação.

Sob um manto de aparente sinceridade , Delphine de Vigan avança numa narrativa que lembra cada vez mais a de “Uma Louca Obsessão”, de Stephen King. Uma sensação morna – e incômoda – de “déjà-vu” vai tomando conta de Marcel ao fio dos capítulos. Aborrecido e decepcionado, ele, que tanto havia apreciado a obra anterior da autora, sente novamente aquela vontade irrepreensível de contar a história de seu jeito. De “repará-la”, de se apropriar dela, rasgá-la e reinventá-la, como fazia nos tempos de menino. E é neste exato momento que opera um milagre: Marcel se descobre, como a personagem principal desse livro, finalmente vitima de uma grande, tremenda armadilha. Tão orgulhoso de sua insubordinação literária, esse incansável rato de biblioteca acabou caindo como um patinho na ratoeira malandramente instalada por Madame de Vigan (ah, esse eterno Zoo das metáforas…). Pensando fazer parte de um duelo entre aquilo que esta escrito no papel versus a imaginação de quem o lê, nosso leitor arrogante é derrubado por uma única e incontestável bala de realidade : tudo é conto; tudo é prosa e tudo é literatura.

Até a vida.

 

Opinião de Marcel sobre o novo livro de Delphine de Vigan :

Ah, ssssalope ! Você me paga !

Opiniões por aí :

Livro bastante elogiado pela critica e eleito pelo público (prêmios : Renaudot et Goncourt des lycéens 2015 )

Flash Dicionário Luso-Marcelês

pochette” : Bolsa pequena onde se carrega coisas. Utilização estritamente proibida ao redor da cintura sob pena de multa, castigos corporais e aprisionamento perpétuo instaurados pela lei do bom gosto a partir de 1989.

intello” (Pronuncia-se “antelô”) :  Ofensa grave aos indivíduos de óculos com boas notas na sexta série atribuída geralmente por bonitinhos populares que não preveem os estragos hormonais causados pela adolescência que está por vir.

Bateau : barco ou algo sem criatividade e totalmente previsível (lugar-comum). É, eu também não sei qual é a relação de uma coisa com a outra. Um barco que vai navegando é tão “bateau” quanto um avião que vai voando. Vire-se com isso.

Elle : o engraçado da língua marcelesa é que não há palavras para denominar as letras. Em português, por exemplo, a letra “M” encontra-se no dicionário como “eme”. A “Z” como “zê”.
A letra “L” em marcelês se diz “elle” (ela) mas não adianta procurar por essa definição no dicionário : você só vai entender o nome escolhido por Delphine de Vigan pra sua anti-heroína se for um baita de um antelô.

Salope” : ofensa bem, mas beeem pior “intello“.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *