A vidraça quebrada

… ou como grandes coisas podem acontecer de maneira invisível.
Ou não.

***

“Como assim, sem autorização?”

“Pois é !  Acredite ou não, construíram até um canteiro de obras subterrâneo. ”

Entre estupefação e desconfiança, ela procura na expressão de seu compagnon a curvinha do lábio superior que batizara de “sorriso sem-vergonha”. Era essa a  única pista identificável  que anunciava a travessura que Marcel  estava prestes a aprontar e da qual, um tanto ingênua e bastante distraída,  Simone era sistematicamente vítima.

“Mas como ninguém os teria visto escalando a fachada do Panteão ?”, indaga, mais curiosa que envergonhada por estar eventualmente sendo feita de boba mais uma vez.

“A polícia até vê. Mas eles usam crachás, com foto, código de barra e tudo. Eles mostram aos oficiais e podem continuar a trabalhar tranquilos”

“Mas esses ‘artesãos’ não podem ser presos por falsificação de crachá?”, indaga ela, penando a entender por que razão plausível alguém se lançaria na restauração gratuita, anônima  e voluntária de um relógio incrustado na parede de um prédio público.

“Seria uma falsificação se existisse um crachá original. Mas o pessoal que trabalha pros Musées de France não têm nenhum.”

Le voilà. O sorriso sem vergonha.

“Você não acredita em mim ? Saiu até no jornal ! – riu Marcel. É um movimento Artístico Urbano ! Ao invés de destruir, pichar ou roubar, esses coletivos restauram monumentos ou alguns de seus elementos. Como o relógio do Panteão, que foi restaurado durante um ano ou as salas subterrâneas de certas construções de Paris. Fizeram em uma delas até um cinema!”

“Rã-rã”, ironiza Simone. “E eles não restauram relíquias das igrejas de vilarejos, torres de arquitetura ímpar em pastoreios ou aquedutos romanos raros nos arredores da cidade, eu presumo?”

“Por enquanto não. Eles se reivindicam urbanos. Viu? Morar na cidade até que tem suas vantagens…”, diz num tom ainda menos convincente, já que somente Simone e Deus sabem o trabalho que deu tirar esse homem dos confins do Beaujolais.

“Estou falando sério!”, sorri Marcel. Quer apostar ?

Simone baixou a guarda. Mais de dez anos de vida em comum a ensinaram que ele só apostava quando estava falando a verdade.

” E você sabe por que eles fazem esse tipo de trabalho em segredo ?”

” Bom…um deles, o Untergunther, diz que é justamente a invisibilidade de certas coisas que permitem que elas sejam poupadas pelos vândalos ou pela usura provocada pelo turismo de massa. Infelizmente, elas são, por esse mesmo motivo, abandonadas pela administração pública e é o tempo quem vai fazendo seu trabalho de desconstrução lenta e tranquilamente,  sem  ser incomodado por ninguém . O que esse grupo quer é poder fazer a mesma coisa, só que no sentido contrário…no sentido da reparação. Na opinião deles, esses bens, considerados como patrimônios comuns, são muito mais representativos para o conhecimento de certas épocas da história, da sociedade e da arquitetura que outros mais famosos. A diferença é que para os primeiros, somente os olhos dos experts sabem identificar seu real valor.”

“Como você, quando me viu?”, provoca Simone com um olhar de malícia.

“Exatamente! ” Marcel exclama, divertido, beliscando a ponta do nariz de sua amoureuse.

” É engraçado imaginar um bando de relojoeiros invadindo sorrateiramente o Panteão como uma quadrilha!”

“Devem  fazer parte de uma espécie de ‘compagnonnage‘ mais rock and roll“, explica Marcel. ” Sabe, esses grupos de artesãos que se reúnem há séculos em torno de uma habilidade  manual ou identidade profissional em comum, como encanador, escultor, marceneiro, pedreiro, tapeceiro…’Compagnons de devoir‘. Do Tour de France…”

Tour de France?”, indaga Simone,novamente  ressabiada.”O que uma corrida de bicicleta tem a ver com isso?”

“Não é a corrida de bicicleta !”, suspira ele, já com certa impaciência. ” É que pra se tornar um ‘compagnon‘ respeitado, reconhecido como tal,  essas pessoas que têm especialidades técnicas devem se tornar aprendizes em vários lugares diferentes. No passado eram só cidades da França, hoje é possível formar compagnons no mundo inteiro!”

Simone  recordou-se rapidamente de mais uma aprendizagem nos  seus dez anos de vida na Casa do Marcel: os  marceleses perdem a paciência muito rápido. Assim, antes que emburrasse, ela tentou trazê-lo docemente ao ponto em que estavam na conversa inicial, aquela que desaguara em grupos obscuros de ninjas da conservação patrimonial e na explicação de embriões dos sindicatos de operários modernos :

“Chéri, estávamos falando da vidraça da varanda, que quebrou. Você acha que neste sábado você consegue consertar?”

“Justamente. Acho que seria uma perda de tempo porque numa noite dessas, se bobear, ela será consertada por um grupo desses malucos que arrumam coisas de graça.”

“Gostaria de lembrá-lo que moramos no sétimo andar.”

“Sim, claro, mas, olhe que interessante : os ‘compagnons‘ são divididos em dois grupos. Os considerados como do ‘Pays‘ praticam suas técnicas em ateliês, próximos ao solo; os de ‘Côterie‘ o fazem em alturas elevadas, com a ajuda de andaimes.  Se tivermos sorte, seremos invadidos sorrateira e ilicitamente pelos do tipo ‘Côterie‘. Vamos esperar.”

Simone não pôde resistir diante de tanta má-fé e caiu na gargalhada. O indefectível sorriso sem-vergonha de Marcel – seu ‘compagnon‘, seu companheiro – estava ali pra não deixá-la esquecer que  era ele na verdade o Mestre artesão que ela havia escolhido para esculpir o resto da sua vida.  E que não teria, por nada nesse mundo, vontade ou motivos para dele se emancipar.

O gato que ri
O sorriso sem vergonha do gato de Simon…hum hum, Alice.

Ainda que, até sábado, o ar frio de fevereiro continuasse a entrar sem ser convidado pela janela.

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