O menino, a esperança e a Velha.

“Ser bonito a esse ponto é de uma nobreza…”, pensava ela
trecho de Chéri – Colette (1920)

 

Tarde de sol em Paris.  Atmosfera um pouco elétrica, gente fumando como sempre nas famosas “terrasses“, café, pichets de vinho branco, garçons apressados, risos.

Sentadas numa mesinha redonda, duas moças jovens e bonitas conversam animadamente:

– Ah, eu acho ele um gatinho!

– Verdade ! Très mignon , esse novo presidente.

– Você viu como todo mundo cai no charme dele ?

– Pudera ! Você já o viu dando entrevistas ?  O homem cita Descartes, Alain, Nietzsche, Levinas, René Char, Victor Hugo…

– …Stendhal, Camus, Gide…

-…Ai ai…

As moças suspiram, como arrebatadas numa fração de segundo pelo espírito de uma groupie dos Beatles um pouco desorientada, procurando o caminho do céu desde 1968 .

Uma delas olha para o alto, escaneando a memória por sua citação preferida. Levanta as sobrancelhas e o dedo indicador, solene:

–  “Somos anões montados nos ombros de gigantes”

– Ah sim…como diria o mentor do presidente Emmanuel, o filósofo Paul Ricoeur…

– Ou Nicolas Sarkozy !

As duas caem na gargalhada.

– Sacanagem com o “Nico” ! A Carla Bruni não liga pro metro e sessenta dele !

– Metro e sessenta quando está com os saltinhos escondidos dentro do sapato e olha lá !

Nova onda de risos. Uma dá um gole no seu copo de Orangina. A outra traga lentamente seu cigarro, pensativa.

Silêncio.

– O amor é mesmo cego.

– Mas se fosse realmente, ninguém falaria em “amor à primeira vista”, você não acha?

– De fato. Mas será que é isso o que aconteceu com esse galãzinho do Macron?  Se bem que ele sempre disse a quem quisesse ouvir que ele a amava ainda criança. Uma paixão irrefreável. Que queria conhecer tudo sobre ela : suas aspirações, seus segredos, suas dores, seu passado… Me parece que ele pôs na cabeça o desafio de conquistá-la desde muito cedo.

– Pudera ! Ela lhe ensinou tudo ! Arte, filosofia… Proporcionou a ele chances preciosas de se colocar sob a luz dos holofotes, só para ser admirado…

– Realmente! Ela foi uma verdadeira mãe pra ele…

– Se eu fosse charmosamente culta como esse mocinho “cute-cute” saído do berço direto pro ENA, citaria uma passagem de Édipo-Rei agora mesmo !

A amiga riu.

– Também, com uma mãe dessas, quem não morre de amores, não é?

– É, mas ela também tem seus defeitos.

– Como todo mundo. Mas continua inspirando admiração e inveja por aí assim mesmo.

– Se pensarmos bem, é impressionante como ele conseguiu convencê-la assim, tão rapidamente… Apesar de seus receios, de seus conflitos interiores, de sua resistência. Ela o acolheu de braços abertos, apesar da rebeldia de alguns de seus filhos, apesar de todas as convenções sociais…

– Nem me fale ! Foi tão rápido que eu diria que ela foi o alvo de uma espécie de hipnose ! Entregou-se quase sem luta diante de seus olhinhos azuis e sorriso fácil…

– Uma escolha sem muita reflexão, como se, diante de outras possibilidades, fosse uma evidência para ela, talvez?

– Certamente ! E em menos de um ano, ainda que estivesse meio dividida, temerosa, angustiada… ela caiu de amores por ele!  Justo ela, que sempre teve dificuldades de se desvencilhar do passado, acabou cedendo à volúpia, ao entusiasmo dessa carne nova!

– Calma calma, canibal ! – sorriu, maliciosa a amiga – mas com aquela carinha de anjo que ele tem, esse jeitinho de bom moço CDF da primeira fila, com sua lábia… é verdade que ele tem mesmo algo de irresistível ! Se até eu, que gostava do outro lá, caí !

– Você também? Eu também não pude resistir ! De alguma maneira inexplicável, ele é muito convincente! Não dá pra não gostar dele. Um sedutor inato.

Um anjo passa.

– Que coisa louca, como um cara tão novo pode se jogar assim, num ímpeto, de corpo e alma, numa aventura certamente supercomplicada com essa velha dama…?

Sentados na mesa ao lado, dois homens de meia-idade, alianças e relógios caros nos pulsos, acompanhavam de uma orelha a conversa. Tomavam café e procuravam uma forma de abordar as duas jovens, que consideravam atraentes.

Eles também não estavam indiferentes à volúpia das carnes novas.

Um deles, considerando aquele momento como o ideal para intervir, interrompeu afavelmente a última frase pronunciada por elas :

– Vocês também acham, como nós, que essa história é chocante ? Não sei como um cara como o Emmanuel Macron pôde se apaixonar e se casar com uma velha daquelas de 64 anos ! Professora dele, com idade pra ser sua mãe, e agora sua mulher…é de um mau gosto, não é? Com tantas desmoiselles charmosíssimas como vocês passeando por aí, tão mais interessantes, tão mais bonitas – disse, piscando um olho cúmplice.

Subitamente, as moças se entreolharam e se levantaram, deixaram algumas moedas sobre a mesa de gorjeta e se voltaram para os dois homens, as duas com as maçãs do rosto em chamas. Pareciam furiosas:

– Vocês são mesmo uns ridículos, patéticos, machistas… dégoutânts ! Onde já se viu tamanha misoginia ?- disse uma – um homem inteligente e seguro é capaz de amar quem ele quiser, quando ele quiser!

– Ah, o preconceito, essa eterna arte bruta de ignorantes como vocês, que não aprenderam ainda que idade, beleza…tudo o que é passageiro, tudo é mero detalhe ! – disse a outra. Só vocês ainda não perceberam isso ?

– Ha !- riu a primeira ao mesmo tempo, os lábios transbordando de sarcasmo e desprezo – e aposto com você, Florence, que esses “monsieurs” ainda se acham irresistíveis, mesmo com essas bolsas debaixo dos olhos e essas…essas bocas moles,  essas barrigas caídas! Só porque ostentam uma espécie de Rolex ou sei lá o que nos braços, e que têm em casa esposas resilientes, que continuam ao lado deles apesar dos cabelos que caem e das pretensões que crescem, sem vergonha nem limite, acham que têm o direito de opinar sobre a vida amorosa e as escolhas dos outros?

Desconcertados e, principalmente, desestabilizados com a reação das jovens, um dos homens balbuciou, constrangido:

– Eu…mas… vocês mesmas mencionaram a velha…que a velha estava dividida…que seus filhos…enfim.

– Mas quem está falando que quando pronunciamos a palavra “velha”, estávamos nos referindo à mulher do presidente? – interrompeu ela, quase aos gritos – estamos falando da França e de seus habitantes! Da “vieille Dame“, da velha sociedade, o Hexágono, nosso país, que acabou de eleger um candidato jovem e praticamente desconhecido até agora há pouco! Que encontrou no discurso dele uma certa esperança e deixou-se convencer ! É disso que estamos falando, pobre imbecil ! Eu devo estar alucinando de ter esse tipo de conversa em pleno 2017, com alguém tão grosseiro, tão patético e tão superficial !

– E estúpido – completou Florence, já se afastando, balançando a cabeça e puxando a outra pelo braço.

E foram embora, amigas de passos firmes, cabelos ao vento e decididas a erradicar o sexismo diante dos olhos incrédulos de dois Don Juan desastrados, que não compreenderam nada, nada, nada da primavera de 68.

Cartaz do filme “Harold and Maude” (“Ensina-me a viver” – 1971)

(Pelo menos no que diz respeito às mulheres.)

 

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