Na Casa do Marcel

Entrez…mais ne frappez pas!

Como se acreditasse no destino, Simone de Lyon picou a mula do Brasa Hill e foi pra casa do Marcel.

Mas isso não é necessariamente ruim: o Marcel mora ao lado da Torre Eiffel. Ou do Arco do Triunfo. Ou nas Champs Elysées. Ou em Collonges au Mont D’or, vizinho do restaurante tri-estrelado de Paul Bocuse. Mora no Monte Saint Michel. Em Cassis, perto de Marselha, onde não há a sobremesa com papaia que a levou ao estrelato (mal-agradecida, Cassis) e onde dá pra ver os artelhos – os artelhos, vejam bem (na Marcelândia apenas o top less é permitido por enquanto) – sob as águas tépidas do Mediterrâneo.

O Marcel é controlador da SNCF, a ótima companhia nacional de transporte ferroviária Marcelesa  (quando não está em greve, mais ou menos uns dois dias e meio por ano. Mas quando funciona, que pontualidade!). É instrutor da ESF no domínio do Mont Blanc,  uniforme vermelho, marca branca do óculos (mesmo quando tira os óculos), deslizantes nos pés e torcida pro céu ficar sempre azul sobre a cabeça, pra ele poder dar bandeira com todo estilo. Temível Marcel este, que solta, como quem prepara uma piada, essas pequenas pestes de três anos do alto da cabeceira gelada das pistas, aguardando com inconfessável satisfação a desabalada carreira que vai perturbar nosso já  titubeante chasse-neige.

Marcel mora em Neuilly sur Seine, vizinho do filho louro e metido à besta do presidente.  É ainda vinicultor nas colinas do Beaujolais assistindo a cada dia, desolado, a aparição de uma nova e esquálida casa pré-fabricada, estes caixotes de mal gosto que vêm destruindo, graças à aberrante escassez de  outros espécimes da linhagem de Jean Nouvel,  vagarosa, triste e irremediavelmente um pouco do charme mítico de suas paisagens.

Na casa do Marcel também tem Tunisianos expatriados, Haitianos sinistrados, Algerianos estabelecidos. Tem armenianos famosos (Tio Aznavour, salve salve!), ingleses rancorosos, italianos invejosos e corações quentes saídos diretamente dos territórios d’outre mer. Tem os dos souks de Marrakech,  Japonês atrás de flash, tem Chinês (e como tem!) e Português que se chama Jean. Tem Egípcios cravados em plena place de la Concorde, tem Russos e Demis Roussos (que é grego). Tem Árabes. E Árabes e Árabes. Com lenços ou sem documentos. Romenos e Roms, que com seus trailers vetustos e seu caló ancestral nos transportam pra uma Rocinha cigana estranhamente familiar. Tem imagem d’Epinal, dançarina de samba Brashilliense, moças bonitas que não pagam mas também não levam, pé noir, pé de valsa, pede- esmola na boca do metrô e pé de moleque que não dá pra comer porque os amendoins daqui não gorjeiam como os de lá.Tem Fast Food de carne Hallal. Minaretes. Polêmica.

Na casa do Marcel tem de tudo. Tem até marcelês. E também um debate com um perigoso cheiro de mofo reacionário promovido pelo Estado sobre identidade nacional: o que é ser marcelês?

Não sou marcelesa e portanto não posso meter minha colher nessa discussão. Mas posso dar meu palpite: ser marcelês é lembrar de guerras que já perdeu e ter de engolir na marra o melting pot indigesto da pós-modernidade. É reclamar, muitas vezes com razão, para que as coisas não mudem. É se desesperar diante das industrias que se mudam para a China, deixando pra trás um rastro de tradições calcinadas  É cutucar com vara curta o revolucionário que adormece em cada um pra poder botar um pouco de ordem na bagunça, mesmo se isso tem sido cada vez mais difícil. Porque como em quase todo lugar neste mundo maluco, a casa do Marcel parece hoje um verdadeiro bordel.  Mas nem por isso já virou a casa da mãe Jeanne.

Bom séjour, Simone . E boa sorte, marceleses.

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