France is so Nice.

 No dia 14 de Julho, Marcel e Simone estavam de folga. Uma plena quinta feira, calma como um domingo, enfeitada por bandeirinhas bleu-blanc-rouge aqui e ali e animada por guinguettes e conversas sobre fogos de artificio.

Coincidentemente sentados no banco que serviu aos posteriores de Luis Mariano em algum momento situado entre o dia 13 de agosto de 1914 a 14 de julho de 1970, eles degustavam um Gratin Dauphinois e riam de suas próprias caras amassadas pelo despertar tardio.

– Vamos dançar ? – pergunta sem muita esperança Simone a um Marcel deveras autocrítico pra se deixar levar pelo alegre som do acordeom.

– Estou dançando – diz ele, acompanhando o ritmo com a cabeça, entre uma garfada e outra.

Um garçom com ares de quem saiu de um livro de San-Antonio pergunta o que querem tomar. Simone questiona o que ele propõe como aperitivo sem álcool.

– Temos água, madame, grunhe o homem ensalsichado no seu terno preto de mangas demasiadamente compridas, aparentemente abotoado a marretadas.
– Hoje é dia de festa – diz Marcel, habituado ao mal humor desde sempre – Vamos tomar vinho !
O garçom volta com duas taças de um côte-du-rhone. Marcel e Simone agradecem e ele bufa. Observam-no se afastar, brincam e brindam:

– Às guinguettes! – sorri Marcel.

– Às guinguettes! – pisca Simone – E aos garçons resmungões !

Bebem em silêncio. Simone pensa no quadro de Auguste Renoir e sonha, por um instante, com um mundo ainda sem internet, habitado unicamente por prazeres simples. De sua mesa situada ao meio do grande Salão da Brasserie Georges, ela saca de sua bolsa um telefone celular e tenta captar sua alegria de estar ali, em vão. Imagens de 24 MB nunca vão conseguir transmitir emoções representadas outrora por pintores impressionistas com a mesma resolução.

Enquanto isso, mais ao sul do país, a família Dummont insiste para que suas duas alegres – e agitadíssimas – crianças façam Dodo. Uma soneca, só um pouquinho, pra não ficarem cansadas à noite. Vocês vão com o Papai e a mamãe ver os fogos de artifício na orla. Está calor, tem bandeirinhas coloridas, vai ser lindo. Papai compra sorvete. Durmam um bocadinho.

No silêncio surpreendente da casa nessa quinta-feira sem escola, o casal aproveita para namorar. Eles se entrelaçam no sofá diante da TV sem som que transmite as comemorações do dia da queda da Bastilha. “Souvenirs d’enfance” ao som imaginário de fanfarras militares.

Às dez da noite, em meio à multidão da Promenade des Anglais em Nice, os Dummont explicam às crianças que esse é um dia de festa porque foi num 14 de julho, há alguns séculos, que a França tornou-se um país mais livre e mais igualitário. Um dia que marcou a luta de alguns homens para que outros tivessem os mesmos direitos. Elas acenam a cabeça, extasiadas diante das luzes coloridas, ainda que um pouco assustadas com o barulho dos rojões. Pai e mãe trocam olhares cúmplices: talvez fosse ainda um pouco cedo para que os pequenos, olhos vidrados no céu,  rostos iluminados pelas luzes intermitentes e queixos sujos de sorvete, entendessem. Mas o futuro encarnado neles depende profundamente do aprendizado do que já se passou e sempre é tempo de ensinar.

30 minutos mais tarde, o espetáculo de fogos termina e os quatro caminham tranquilos de volta pra casa. Mas um caminhão branco, vindo sabe-se de onde, invade a avenida da praia, atropelando pedestres, sorvetes e futuros. Fim da alegria. Fim da igualdade, da liberdade, da fraternidade. Fim da história para a pequena família Dummont.

Diante da TV, Marcel e Simone choram. E já sentem saudades de um mundo onde a maior ameaça para um bom dia era a expressão de um garçom casmurro que, no fundo no fundo, só queria ter o direito de dançar ao som do acordeon também.

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